Thursday, September 14, 2017

It`s an outlier!

"Eu é que sei!": Oposição, fragilidade e retraimento no universo operário.




Saber com o corpo, conhecer com o corpo, representa um modalidade de conhecimento específico, que contribui para enformar práticas e estilos de vida, a acção de grupos socioprofissionais particulares que constituem, em termos históricos, um referente significativo, nevrálgico, no quadro das relações laborais mantidas em Portugal.

A "memória do corpo" constitui uma dimensão fundamental na cultura destes grupos profissionais (Monteiro, 2014, p. 56). Quando o trabalho "sai do corpo", saber colocar as costas, saber usar as mãos, ver fazer para ganhar "o jeito", constituem práticas rituais. Aprender "a arte" por mimese, para dar depois "o ser à obra" (Monteiro*, 2014), define um modo de aquisição de um "senso prático", de saber(es) que não se encontra(m) contido(s) num texto. 

Quando o trabalho "sai do corpo", "o jeito" que se ganha oscila o dom e o destino, incentivando o estabelecer de ligações fusionais entre o que se "faz" e o que se "é", entre usura, possessão e despossessão, na relação que é estabelecida e mantida com o universo do trabalho.

A exaltação do "gosto" e do domínio da "arte" representam, neste contexto, uma instância de auto-justificação, uma economia de grandeza particular que é atribuída às virtudes da técnica oficinal. Oferece um contra-fogo, uma ética prática que sublima a assimetria experimentada no quotidiano, promovendo a reclusão dos indivíduos num ideal de integridade pessoal ("ser marceneiro limpo"; "ter a mão singela"). 

A directriz gestionária que constrange o corpo activo (a racionalização dos gestos, a definição de gestos "legítimos", o uso obrigatório de luvas, de auscultadores, de máscara, de botas de protecção) é vivida como imposição, como ameaça à distintividade pessoal, às possibilidades de afirmação de si, um constrangimento externo que tem lugar ao nível do último (do único?) reduto de autonomia pessoal: o próprio corpo.

Os auscultadores: não se ouve ruído, mas não se ouve o colega. A máscara de protecção: não se inspira pó, mas não se fala com ninguém. A procura de deflexão, de oposição face ao proselitismo gestionário, à ordem oficial percebida como constrastante com a autenticidade de um "senso prático" adquirido de forma paulatina, encontra diferentes formas de expressão: o retraimento, o esquecimento deliberado da indicação hierárquica, a afirmação de auto-suficiência ("Eu é que sei! Mas alguém manda em mim?").

Saber com o corpo, conhecer com o corpo, proporciona revelações práticas, intuitivas, sobre "o mundo da vida", dispensando a avaliação reflectida das circunstâncias, o planeamento deliberado da acção. A fábrica "faz bem". No estaleiro de uma obra, "aprende-se o que é a vida". A fábrica, a obra: uma e outra contribuem para o cumprimento circunspecto de um destino, de uma "vocação". A cirscunpecção, o conformismo apresentam a experiência da vida e da posição operária como sendo bastas vezes marcada pela espera passiva, pelo "realismo desencantado" (Monteiro, 2014, p. 113), a indiferença agnóstica - modos de dissuasão temporária das asperezas da realidade.

A vocação, a virtude "artística", oficinal, opera como fundamento de práticas sociais e culturais, de uma economia moral específica, mais intuitiva do que calculada, mais pressentida do que planeada, que visa manter o valor atribuído ao trabalho que "sai do corpo", a uma taxonomia de saberes oficinais, ao valor do domínio de uma "arte", à cumplicidade fusional, solidária, estabelecida com um grupo de semelhantes.

O sacrifício, o controlo normativo estabelecido através do grupo, a tendência para o conformismo, a preferência pela ratificação colectiva, a percepção cirscunspecta do tempo e do futuro ("o meu futuro é ter um bocado de sorte e não ter grandes doenças"), o realçar da prática, a depreciação de saberes teóricos, abstractos, intelectualizados ("não fazem nada"), a procura de fechamento, de refúgio, de auto-exclusão num arbítrio cultural autóctone, constituem exemplos de referentes de orientação moral no universo operário.

Há futuro quando há dinheiro. O futuro apresenta-se frequentemente como um luxo, uma dúvida, uma possibilidade que se reduz. O dinheiro regula as relações que se estabelecem com o espaço, com o tempo, com os outros. O dinheiro permite ir ao futebol, ao café, permite "pôr o pé fora de casa". Há que ganhar dinheiro, há que "fazer pela vida".

O fechamento e a auto-exclusão sinalizam a fragilidade de uma condição marcada pelo constrangimento, decorrendo desta circunstância o estabelecimento de rotinas de convívio e sociabilidade restritas ("gosto de estar entre a minha gente"), e a tentativa de fuga, de subtracção ao contacto com lugares onde uma comparação penalizadora (face ao falar, ao gosto, ao estilo de vida celebrado no espaço público) seja possível. Em momentos particulares, a procura de distância é entrecortada por estratégias de sobre-investimento na apresentação social: usar "roupa nova", lavar o carro, servir o vinho guardado para dias de festa.

A importância atribuída a diferentes sortilégios (a sorte, o azar, o destino, a maldade) transcrevem uma condição de constrangimento, uma "vida em estado de urgência" (Monteiro, 2014, p. 212), a incapacidade (indiscutida) de fazer face às insinuações de um agente de opressão poderoso - que pode ter ou não um rosto concreto, visível. Trata-se de um terreno fértil para a conspiração anónima, a circulação de sentimentos de malevolência (a inveja), redutos de protecção ontológica que transmitem uma sensação de explicação e de controlo temporário dos acontecimentos: "Quando o infortúnio e a dor são comuns, (...) e a pobreza e a moléstia são violentas, é excelente a oportunidade de se cumprir o anseio de que aconteça um mal a alguém"(Ashforth*, 1996, p. 1208). A carência não suscita, dificulta, ao invés, o auto-domínio, a neutralidade afectiva.

"É a prática que faz o artista": o fim de uma prática, de uma "arte", de um ofício, corresponde a uma morte, a uma morte social. A desvalorização da "arte" é a negação do "artista". Trata-se do domínio de um valor (pessoal, social e económico), outrora existente e partilhado como sendo indiscutível, que é colocado em dúvida.

A cessação de uma maneira de fazer é também e sobretudo a cessação de uma maneira de ser. É o próprio direito a crer que é colocado em dúvida. 



(para a liana)







*

Ashforth, A. (1996). Of secrecy and commonplace: Witchcraft and power in Soweto, Social Research, 63 (4), pp. 1183-1234.

Monteiro, B. (2014). Frágil como o mundo: Etnografia do quotidiano operário. Porto: Edições Afrontamento [fonte primária das expressões verbais e excertos apresentados].

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